26.6.09

Transcendência Equiparada
















Quatro horas ininterruptas lendo Maupassant. Levanto-me levemente atordoado do sofá e me dirijo até a cozinha. Escancaro a geladeira. Encho até a borda um refrescante copo de colostro; última moda em gêneros alimentícios comprado por um preço exorbitante em um supermercado aqui perto de casa.
Volto à sala. Preciso me redimir... Tenho que confessar algo ao mundo. Pego o telefone e disco um número aleatório. Alguém do outro lado atende:

- Alo?
- Eu te amo...

Desligo.
Volto ao sofá. Minha bunda dói.
São três semanas sem ligar a televisão, dois dias sem ir aos pés, sete segundos sem piscar os olhos. Onze horas sem dormir, dez minutos sem espirrar, uma vida inteira sem fazer nada que preste.
Tento me persuadir a uma atitude qualquer. Visto o roupão roxo que jaz inerte no chão do banheiro e me proponho a sair para a rua.
O céu resplandece em sua magnificência. Crianças brincam no parque. Pássaros entoam seus cânticos atabalhoados. Oh meu Deus! Só então percebo que não consigo mais sorrir...
Fico ali, parado em meio à multidão com a mão direita forçando de encontro ao peito, esperando que minha carne, músculos e ossos, pouco a pouco cedam, para que então, eu alcance o coração que ali dentro solitário se encontra, e possa finalmente com o que resta de minhas forças motivadoras, esmagá-lo.
Sempre tento estas formas inúteis de suicídio passivo... Quanto mais improváveis e ineficazes; melhor. Outro dia, sentei em um banco de praça, e ali esperei que os pombos me cagassem a cabeça até a exaustão de minha vida.
Sinto uma pressão no meu ombro. É uma mão feminina que engloba com firmeza minha omoplata. Viro meu rosto de encontro ao dela...
É uma mulher comum. De uma beleza comum. Possui um corpo comum e diz que se chama Maria. Olha-me no fundo dos olhos com uma expressão de complacência e pede que eu me acalme.
Surpreso com aquela compaixão solidária, me desvencilio de sua mão e digo:
- Como posso me acalmar? Preste atenção ao que me pede. Não tem como me acalmar, se a Terra gira, gira, gira e eu sinto cada movimento... Estou tonto e enjoado. É como viver num eterno carrossel.
- Sei como se sente. Mas não posso conceber que uma pessoa se entregue desta forma, tendo eu a solução para os seus problemas. Sabe como faço para que tudo melhore? Fecho os olhos e tento me concentrar na escuridão total e absoluta. Veja bem, o mundo é assoberbado de estímulos. Tente reduzi-los ao mínimo possível... Solucionar esta avalanche de informação. Veja, tenho aqui dois protetores auriculares. Pode usá-los se quiser.
- Mas e o corpo etéreo? O sentimento tátil? Não é possível bloquear a sensação física de permanência existencial.
- Não é possível mesmo. Mas você sempre pode focar, reduzido a sensação a apenas uma.
- Focar como?
- Como um beijo por exemplo. Feche os olhos. Concentre-se em um beijo e só assim o mundo fará sentido.
- Mas eu não tenho ninguém para beijar...
- Então feche seus olhos que eu te beijo.
Fechei. Fui sedado.
Cai no truque barato de uma enfermeira de ambulância de sanatório. E tudo então finalmente fez sentido. A vida é mesmo um truque barato.

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