25.1.08

O VÔO















As manhãs de Porto Alegre são dotadas de um certo ostracismo da realidade.
É algo que não sei definir de outra forma. O ano era 2001 e eu trabalhava no oitavo andar de uma imensa estrutura de pilares e vigas. Logo, ela serviria de habitação para médicos, advogados, publicitários, e outros tantos profissionais importantes.
Eu estava preenchendo um tedioso formulário de medição de mão de obra, enquanto observava um pedreiro, levantar uma parede sendo servido de massa de cimento com peculiar lentidão, por um servente, que virava o carrinho de mão e depois acendia um cigarro fedorento.
De repente algo me chamou a atenção. Do edifício em frente, um pequeno cão branco, saiu voando pela sacada de um dos apartamentos. Ele ainda seguiu em linha reta por instantes no espaço, me dando a falsa impressão de que iria realmente voar. Depois foi perdendo altura, se debatendo no espaço, até finalmente desmanchar-se no solo num baque surdo e violento.
Alertei os outros, que correram para ver. Logo em seguida, da mesma sacada, um vulto, desta vez bem maior que o cachorro, saltou para a morte. Não pude conter um grito de desespero quando reconheci que era uma figura humana que caia, enquanto eu impotente, só podia fechar os olhos em respeito ao seu destino. Depois do forte barulho da aterrissagem, desejei que tudo tivesse terminado e abri os olhos... Foi uma visão triste e aterradora, que não pretendo ilustrar aqui.
Desci, evitando a multidão de tétricos curiosos, e entreguei um pedaço de lona plástica preta para um rapaz que assumiu o controle da situação. Depois que o IML finalmente fez a remoção, o dia transcorreu normalmente.
Naquela noite, fiquei pensando nestas muitas histórias tristes que a cidade oculta, e que só por algumas vezes temos a infelicidade de testemunhar. Depois de tomar um lexotan e meio, consegui finalmente dormir.
Na outra manhã, durante o café, no refeitório, alguns peões de obra comentavam o fato ocorrido no dia anterior. Alguém trouxera o jornal onde estava impresso o obituário da jovem moça. Não havia menção alguma ao suicídio, apenas uma foto dela sorrindo e logo abaixo uma passagem reconfortante da bíblia. Ela tinha 26 anos.
O que sempre me intrigou nessa história, e garanto que a vocês também, foi o fato dela ter atirado o cão pela janela antes de por fim a vida.
Penso que talvez tenha sido um sentimento de extrema solidão que fez levar consigo, a única companhia sincera que julgava ter em vida. Analisando o fato sem poesia, tudo acabou sendo um derradeiro ato de maldade.
Bem, eu não tirei nenhuma lição dessa história.
Apenas continuo vivendo e tentando não me ausentar do mundo.
Acho que assim está de bom tamanho...

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2 Comments:

Blogger Tônia said...

pobre cachorrinho :(

9:12 PM  
Anonymous Anônimo said...

Ai que horror...

6:26 AM  

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