CONSUMATUM EST

Vânia me comunicou que estava grávida...
Proclamou isto, com a mesma naturalidade de quem diz que está com fome.
Talvez para ela, o fato de uma mulher saudável com 26 anos, estar grávida, seja mesmo algo natural.
Mas enfim, ela me disse que estava grávida e ficou em silêncio. Só me estudando...
Absorvi tudo, como quem toma uma xícara de café frio e sem açúcar.
Namorava Vânia a uns 4 anos, e algumas vezes me assustava com a velocidade com que nosso relacionamento se desenvolvia.
Mas gravidez... Isso era exagero.
Vânia interrompeu meu raciocínio interrogando-me sem paciência:
- E então?
- Ãh...Você tem certeza? - na hora já me arrependi de ter perguntado aquilo; mas era inevitável. São frases que se complementam... Impossível pronunciá-las sem aquele indesejável couvert.
- Acho que sim né!? Afinal, estou um mês atrasada com a menstruação. Você vai querer que eu tire?
Era o que me faltava. A situação estava cada vez mais se parecendo com letra de música do Odair José.
- Não, claro que não.
Está aí uma situação típica para ser colocada no manual do proprietário de um relacionamento:
DEFEITO: Regras atrasadas
SOLUÇÃO: 1- Verificar se não a mau funcionamento no sistema reprodutivo.
SOLUÇÃO: 2- Escolher os padrinhos
- Quem sabe se nós formos a um médico?
- Eu sei disso. Mas quero saber se for confirmado... O que nós vamos fazer?
Vânia falava sobre nós. Falava sobre nossa prole.
Falava sobre bala de menta grudada no tapete da sala.
Falava sobre noites em claro, educação exemplar, filmes idiotas no cinema, falta de dinheiro, transferencia de ideais, preocupações com febre alta, reunião de pais e mestres, fralda cagada fedendo no lixo. Falava sobre renúncias e responsabilidades; coisas com as quais os jovens não conseguem lidar assim tão facilmente. De repente, me senti velho. Tão velho que não pude nem falar...
Confirmamos o que já sabíamos, e de certa forma, eu já receava. Vânia carregava em seu ventre, um pequeno girino, que mais tarde se tornaria numa criança linda e depois, provavelmente, um adulto deplorável.
Perdido naquele espiral de acontecimentos, providencias, exames, idéias, enxoval, escolha de nomes, avisar parentes e amigos; me senti determinado a divergir de tudo. Entrei em uma espécie de torpor valente, algo muito parecido com um estado de choque. Vânia heroicamente, assumiu o determinismo das fêmeas prenhas, e a todo o momento tentava me reconciliar com uma paternidade omitida, me mostrando bercinhos, roupinhas, sapatinhos e outros mini artefatos.
Mas a todo instante, como uma dor crônica e persistente a palavra “filho” me vinha na mente. E com ela, um complemento definitivo, de autoria de Vinícius de Moraes, seguia advertindo: “melhor não tê-los! Mas se não os temos, como sabê-lo?”.
Para mim, filho era bem isso. Como um porre... Parece que gostamos do que estamos fazendo; prosseguimos até as últimas conseqüências, mesmo com a consciência que amanhã nos arrependeremos amargamente. Temo que este porre só piore com um filho não planejado.
Numa noite, enquanto Vânia dormia nua ao meu lado, fiquei observando sua barriga já protuberante. Sempre tive medo de barriga de gestante. Parecia-me que ao mais leve toque, ela explodiria, expelindo um bebê bala para o azul infinito do espaço. Percebi então que poderia ficar horas acompanhando o compasso de sua respiração.
Aquilo definitivamente me acalmava.
E foi só então que me veio uma certa compreensão de tudo.
Notei que com o passar do tempo, pouco a pouco, e de tanto me preocupar, passei a me acostumar com a idéia. Passei a ficar estranhamente feliz.
Era como se as conseqüências, fossem realmente ínfimas diante do fato que em breve eu carregaria nos braços esta emanação humana de mim. Passei a compreender que um filho é realmente, um mal necessário.
Principalmente para que me venha definitivamente o esclarecimento que um dia, esta minha individualidade vai se extinguir, e ao mesmo tempo perdurar, de uma forma um tanto quanto esquisita.
Não me refiro a lembranças... Lembranças da nossa existência, as pessoas terão talvez por uns 50 anos... Depois disso, ninguém terá lembranças desta nossa contemporaneidade partilhada, a não ser que façamos algo definitivamente magnânimo, ou indiscutivelmente hediondo.
Também não me refiro a perdurar linhagens. Ninguém se perpetua em mais ninguém a não ser em si.
Eu me alegrava sinceramente com a possibilidade de contar meus erros e acertos a alguém cujo discernimento seria de minha responsabilidade. Fiquei feliz principalmente com a responsabilidade de amar. E este meu comprometimento, depois de alavancado, poderia ser facilmente estendido a Vânia, aos meus pais, ao meu cachorro, meus amigos, colegas de serviço, minha vizinhança, ao meu mundo enfim. E nada melhor que começar a praticar aos poucos. Nada melhor que começar a praticar com uma criaturinha tão frágil, tão desprotegida e inocente como é um bebê.
E foi basicamente assim que meu filho me mudou. O resultado alterando o produto. Jamais pensei que o indesejável fosse assim tão essencial.
Depositei minha mão no ventre de Vânia, e silenciosamente fiz a promessa de amá-los incondicionalmente para todo o sempre.
Marcadores: Crônica
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