31.8.07

Análise de Conteúdo

















- Próximo!
- Doutor, doutor, acho que eu me perdi! Eu fui para a sala de cirurgia, e agora não consigo mais achar meu quarto.
- Bem, meu filho, não existe maneira simples de dizer isto, então lá vai: aqui não é o hospital, aqui é o Céu.
- Isto quer dizer que eu morri?
- É uma forma um tanto simplista de encarar a questão, mas está correta, sim.
- Eu sabia que aquele tratamento com células tronco era uma roubada...
- Bom, eu não sou nenhum especialista no assunto, mas tenho certeza que os tratamentos eficazes que usam células tronco não incluem imbuia nem jacarandá.
- É mesmo? Sabia que eu devia ter procurado no Google antes... E agora, o que acontece?
- Agora vamos decidir se você vai poder entrar no Céu ou não.
- Ah, então você vai olhar num livro, para ver se meus atos em vida foram bons, né?
- Livro, meu filho que coisa ultrapassada... Hoje é tudo informatizado. – Disse São Pedro, enquanto ligava um computador.
- Então neste computador estão todos os meus atos?
- Bom, não exatamente.
- Como assim?
- Antigamente a gente seguia este procedimento de registrar os atos bons e maus, mas um tribunal nos Estados Unidos considerou isto invasão de privacidade e fomos proibidos de fazer o registro por uma ação judicial...
- Os americanos processaram o Céu?
- É...
- E o que os seus advogados fizeram? Por que não entraram com um recurso?
- E desde quando tem advogado no Céu?
- Ah... E como vocês fazem agora para julgar se as pessoas entram no Céu ou não? Sorteio?
- Não, não, nós apenas usamos uma abordagem diferente.
- É? Qual?
- Análise de conteúdo.
- Hein, como assim?
- Nós analisamos o que a pessoa deixa para trás, suas obras de arte, livros, peças e coisas assim.
- E se não tivermos feito nada disso em vida? Eu não escrevi nenhum livro, nem peça de teatro!
- Bom, sempre tem o e-mail.
- E-mail?
- É, você nunca usou e-mail no trabalho ou em casa?
- Bem sim, mas...
- Então?
- Mas aí não é invasão de privacidade também?
- Seria, se não houvesse um contrato assinado, permitindo que nós investiguemos os e-mails.
- Que contrato?
- Você nunca viu aqueles contratos de uso de serviços de Internet que já vem com um botão escrito “Eu Concordo”?
- Vi, mas...
- E você leu?
- Só o começo, mas...
- Ninguém lê aquele negócio. Lá no final, em todos eles, está escrito que o material gerado eletronicamente pode ser usado para avaliação pós-morte.
- Sério?
- Claro! Mentir é pecado! “Não prestarás falso testemunho” , lembra?
- Foi só força de expressão, não quis dizer, bem, é que... Peraí, vocês controlam os provedores de Internet?
- Não... Muito trabalho... Nós somos a Internet.
- Como assim?
- Você já viu como estas empresas trabalham? Uma empresa presta serviço para outra, que presta serviço para outra que subcontrata uma terceira que aluga uma quarta e assim por diante... Se você seguir o fio da meada até o fim vai chegar até nós. Ou até uma empresa russa, um dos dois. De qualquer forma, os russos também devem nos subcontratar, afinal como é que este negócio de Internet pode funcionar? Só por milagre...
- Mas para que tudo isso?
- Ora essa, já falei no começo, para podermos julgar quem pode entrar no Céu.
- Através dos e-mails.
- Isso. E páginas pessoais, blogs, Messenger, ICQ, a tralha toda.
- Meu Deus!
- Ele é o Diretor de Tecnologia! Agora você está entendendo.
- Isto é incrível. Isto é diabolicamente inteligente... Quer dizer, divinamente, sem ofensas, sua santidade...
- Obrigado, não é por que não temos advogados que não podemos ser espertos, não é mesmo? Agora vamos ver, o sistema já terminou de carregar seus dados, vamos ao trabalho: 12 milhões de e-mails enviados, recebidos, sem o spam, 26 milhões de e-mails. Vamos ver o que tem aqui: piadas, correntes, mensagens motivacionais, tudo para a lixeira. Pornografia, hein? Coisa feia, ponto negativo. Blá, blá, blá, relatórios de andamento, relatórios semanais, mensais, bimestrais, trimestrais, semestrais e anuais, tudo para a lixeira. Blá, blá, aviso de vírus que não existe, “envie para todos os seus amigos”, lixeira. Hmmmm, enviou um e-mail para o diretor reclamando do chefe, hein? Falta de lealdade é mais um ponto negativo. Bom, acho que é mais ou menos isso.
- Só isso? Vou ser julgado por dois ou três e-mails?
- É, a gente faz uma amostragem. Não tem como alguém ler tudo o que todo mundo escreve e recebe. Iríamos ficar a eternidade aqui. Bom, eu vou ficar a eternidade aqui de qualquer jeito, mas acho que você entendeu a idéia.
- Mas só dois ou três e-mails?
- Tem uma coisa de fatalismo nisso que me agrada, sabe? Você nunca sabe o que vai pesar contra você, então você acaba se comportando melhor mais tempo. Com o tempo as pessoas aprendem. E você vai para o purgatório.
- Purgatório? Então existe aquela coisa de céu, inferno e purgatório, que nem na “Divina Comédia”?
- Nós acabamos incorporando muitas das idéias do Dante. Ele trabalhou aqui durante um tempo como consultor de infra-estrutura. Muito esperto, o rapaz.
- Mas o céu e o inferno não existiram sempre?
- Mais ou menos. Eles existem sempre, desde que existam pessoas que acreditem. Enquanto as pessoas acreditarem, o céu e o inferno assumirão a forma daquilo em que eles acreditam e terá sido sempre assim. Os especialistas chamam isso de retroalimentação teológica. Você vai ter bastante tempo para conversar sobre isto. Um dos castigos do purgatório é o papo-besta eterno.
- Tipo uma conversa de bar?
- É, só que sem cerveja e sem salgadinhos. A conversa de bar eterna fica no céu.
- Entendo... E, desculpe a curiosidade mórbida, mas o que tem no inferno?
- Nada agradável: tem a fila de banco eterna, onde sempre é hora do almoço, só tem um caixa que está em treinamento e todas as pessoas na sua frente são office boys, tem a troca de senha eterna, onde você tem que trocar a senha de seu computador a cada cinco minutos e cada nova senha tem que ter duzentos e trinta e nove caracteres e, claro, tem o telemarketing eterno, onde você tem que atender um telefone o tempo todo e sempre é alguém tentando te vender alguma coisa., entre outras coisas.
- Parece horrível, ainda bem que não vou para lá. Quanto tempo vou ficar no purgatório?
- Uns quinhentos anos. Passa rápido. Pode seguir aquele corredor e entrar na porta do meio.
- Então vou indo, né? Até mais, sua santidade.

- O próximo!
...
- Próximo!
...
- Não estou com pressa não, seu santo. Pode atender os outros antes.
- Rapaz, só tem você na fila!
- Mas não estou com pressa não!
- Venha logo aqui que eu não tenho a eternidade para ficar esperando, quer dizer tenho, mas não vem ao caso. Vamos carregar os seus dados... O quê? Cinco trilhões de e-mails enviados? Trabalhe em casa? Aumente o seu pênis? Viagra barato? Ah, então era você que enviava este negócio?
- Eu posso explicar, seu santo...
- Não precisa explicar nada não, meu filho. Siga aquele corredor e entre na última porta à esquerda, aquela que tem fumaça saindo por baixo.
- Mas...
- VAI AGORA!
- Tudo bem...
- Sabe que às vezes eu até gosto deste trabalho? Próximo!



Renato M Lellis

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2 Comments:

Blogger Ana Gouvêa said...

Cara...como tem gente genial nesse mundo, né?
E todas moram bem longe de mim...

4:03 PM  
Blogger Tônia said...

Soh me preocupou o fato de não haver advogados no céu!!!!!!

enfim, se já tava confusa...hauahiuahai

\o/

6:51 PM  

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