O Descender Acedente

Vilela pegou gentilmente o filho no colo e lhe trouxe ao alcance dos olhos a cena tétrica. Prendendo o pequenino rosto pelas bochechas rosadas em suas imensas mãos, comandou:
- Menino, olha o morto!
A criança cerrou forte as pequenas pálpebras como se apertando-as mais, menos pudesse ver o corpo inerte de seu avô no ataúde. E lá, na escuridão de seu terror, o grito insano de seu pai reverberava:
- Abra esses olhos e olha o morto!
Os demais familiares presentes no velório, atônitos, correram ao auxilio do menino que chorava de medo.
- Me deixem! Me soltem! Olha o morto guri!
Vilela defendia-se com as pernas do filho enquanto lhe apertava ainda mais o rosto. A excruciante dor fez com que o menino abrisse finalmente os olhos e encarasse o rosto do morto.
Foi quando parou de gritar, e ficou estático tal qual boneco de cera. O pai lhe sacudia o corpo em repelões bruscos, fazendo com que a mão que lhe prendia a face, resvalasse pelas lágrimas.
- Viu só? Viu?
Conseguiram finalmente lhe agarrar pelo pescoço, e arrancar a criança de seus braços. Mais cinco parentes foram necessários para tirar o atormentado Vilela da sala.
- Me larguem, me larguem! Meu pai morreu!
Seguiu-se então o silencio constrangedor que sempre acompanha um escândalo familiar. A criança permaneceu parada no mesmo lugar onde fora deixada. De pé, observava o corpo tendo no olhar uma incompreensão estática. Foi finalmente acudida por uma tia amorosa, que lhe pegou no colo e a retirou do velório:
- Vêm meu amor, vem com a tia. Pessoas amadas são sempre perdas sentidas.
São revelações pagas ao preço de um trauma.
Um trauma que se passa de geração a geração...
Marcadores: Crônica
1 Comments:
O prazer da leitura unido ao delírio da descoberta num final de tarde de domingo com cheiros de outono (hummmmmmmm).
Sem comentários.
Abraços
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