13.1.07




















Domínio sob o Condomínio

Quem sabe o que nos leva a tomar as mais estranhas decisões ou desenvolver os mais esquisitos gostos? Tome o exemplo de Valter. O homem tinha tara por reunião de condomínio.
Quando via uma convocação, já começava a suar frio. Corria para conferir na agenda se tinha algum compromisso marcado, e se tinha, mesmo assim desmarcava por mais intransferível que fosse. Valter chegou ao cúmulo de faltar ao batizado da afilhada, para discutir qual seria a cor do uniforme do pessoal da limpeza.
Presente na primeira chamada, seu nome já figurava encabeçando a ata. Entrava no salão de festas esfregando as mãos suadas e sentava-se na primeira cadeira, proferindo sempre a mesma frase:

- E então? O que temos para hoje?

Discutia os prós e os contras de tudo, colocava a honestidade do síndico em dúvida, e sendo assim, acabou comprando briga com o prédio inteiro.
Pelo menos uma vez por mês, Valter batia de porta em porta com uma folha na mão querendo convocar uma reunião extraordinária. Por essas e por outras, passou a ser conhecido como - O Mala do 601.
Tudo estava prestes a mudar quando seu vizinho de porta foi morar na zona sul e a estonteante Maria Augusta veio para ocupar o apartamento vago. Já na sua conturbada mudança, as paredes dos corredores foram riscadas, e metade dos móveis foi abandonada no corredor por não caber no apartamento. Quando chegou do trabalho, Valter teve que pular um sofá para poder entrar em casa. Ficou furibundo com aquela balbúrdia, e foi direto bater na porta da nova vizinha: Quando ela atendeu, Valter já engatou:

- Boa noite. Meu nome é Valter, sou seu vizinho e...

Valter perdeu a linha de pensamento quando viu Maria Augusta loira, linda, enrolada numa toalha azul claro pingando água dos cabelos.

- Olá vizinho! Meu nome é Maria Augusta. Mas pode me chamar de Guta.
- Ãh... Como?
- Guta.
- Oh! Sim, entendi errado. Pois Dona Guta...
- Dispenso a dona. Me envelhece uns 30 anos. Você mora aqui do meu ladinho né? Puxa como é bom ter gente de bem morando assim tão próximo da gente... Olha o senhor me desculpe, mas eu tenho que entrar... Estou molhando todo o carpete. Até logo! Um beijo!

Bateu a porta na cara do Valter, e a mudança acabou ficando pelo corredor.
No outro dia às 2:45 da manhã, fortes batidas de martelo ecoavam pelo prédio. Valter acordou invocado. Calçou suas pantufas, vestiu o chambre do Corinthians e novamente bateu na porta do 602. Guta atendeu:

- Seu Otávio! Que bom que o senhor veio me ajudar!
- É Valter. Dona Gu...
- Dona não!
- Guta. Olha me desculpa, mas a senhora esta martelando e são três da matina! Eu tenho que acordar cedo amanhã.
- Ah seu Valter... Acontece que eu não consigo dormir sem a foto do meu santo protetor em cima da cama. Eu estava esperando todos dormirem para que assim ninguém notasse minhas marteladas. O senhor poderia me ajudar?

Valter não entendeu aquela lógica inversa. Atordoado de sono entrou no apartamento de Guta. Martelou uns 4 pregos até ela concordar que o local estava bom. Finalmente pendurou o quadro do bendito Santo Antonio em cima da cama.
No outro dia, o síndico entregou uma multa para Guta por martelar em horário de silêncio. Ela refutou a sanção dizendo que quem havia martelado de fato fora o seu vizinho. Valter recebeu sua primeira multa condominial em 25 anos sem poder reclamar.

Parece que este foi o estopim daquela guerra unilateral que passou a ser travada no edifício. Possesso, Valter desistiu da política de boa vizinhança. Pediu que o síndico intercedesse, mas como ele não era muito bem quisto, acabou sendo ignorado. Apelou então pro abaixo-assinado, mas aí já era tarde demais... Guta havia feito amizade com todas as mulheres do prédio e os homens não a queriam despejada por motivos bastante óbvios.

Assim, assistiu impotente a anos de disciplina e zelo irem por água abaixo. De repente os demais moradores passaram a viver com suas portas abertas, sentados na sala convidando quem passava no corredor pra tomar uma cervejinha. No prédio, ecoava constantemente o som da banda Calypso e recendia um cheiro constante de cebola.
Valter passou a sofrer dos nervos. Foi aconselhado por seu médico a mudar os velhos hábitos, porque um enfarte era iminente. Resolveu deixar aquele cortiço e se mudar para o campo. Os filhos já estavam criados e a mulher queria apenas sossego...
Arrumou as malas, deixou instruções para cuidarem das plantas, e foi carregar o carro. Quando amarrava a última mala no capô, sentiu três cutucadas no ombro. Era Guta:

- Seu Valter, me desculpe a intromissão, o senhor vai mesmo se mudar?
- Vou Guta. Vou embora daqui. Estou doente e preciso de paz.
- Puxa... Espero que o senhor fique bom. Pode ficar tranqüilo que eu cuido das coisas por aqui.
- Olha Guta, posso te pedir um favor?
- Claro.
- Eu gostaria que a senhora fosse à próxima síndica do prédio. Poderia realizar este sonho meu?
- Sim seu Valter.
- Muito obrigado. Adeus.

Valter partiu sem olhar para trás.
Dois anos depois, ele voltou em visita à cidade. Na frente do lugar onde passou os melhores anos de sua vida, ele via agora um prédio abandonado que servia de moradia para os mendigos. Desceu do carro, chutou o compensado que bloqueava a porta e entrou.
Foi subindo pelas escadas fétidas, tentando não pisar nas seringas abandonadas nos degraus. Finalmente chegou ao corredor do sexto andar. O apartamento 601 não tinha mais porta. Os móveis também foram saqueados, as louças do banheiro quebradas, e todas as paredes estavam pichadas. Valter pegou um lenço do bolso, molhou na saliva e começou a esfregar uma parede.
Viu um vulto na entrada.

- Seu Valter?

Era Guta.

E seu coração bombeou pela última vez.

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Segue um pequeno curta de animação mostrando como o amor pode ser complicado, sem sentido mas assim mesmo maravilhoso- divirtam-se: