3.11.06






















Destinos em Pequenos Desatinos

Eis que a paternidade reserva ao homem uma boa dose de preocupações, exasperações e tormentos. Do palavrão proferido em frente às visitas, à ingestão dos mais diversos e nocivos objetos possíveis de se passar pela boca...
Entre tantos outros motivos para abalar o tranqüilo sono de Ferreirinha, torcedor fanático do Esporte Clube Novo Hamburgo, estava à escolha futebolística que seu pequeno fruto em breve faria.
Ferreirinha conhecia histórias de vários outros amigos, que tiveram decepções terríveis com seus filhos. Um deles, inclusive, entrou em profunda depressão, tentou o suicídio, e isolou-se num retiro espiritual de Três Coroas, quando flagrou seu garoto, ostentando garboso, a camiseta de um time Búlgaro de badminton.
Mas para Ferreirinha, nada seria pior do que o menino optar por torcer, pelo arqui-rival do Novo Hamburgo; o Esporte Clube 15 de Novembro...
Alemão Jonas, um sujeito adiposo, bem humorado, dono do empório da cidade, era amigo de Ferreirinha e apesar do contra-senso, torcedor do 15 de Novembro. Os dois viviam se provocando naquela sadia, e porque não, sádica prática de torcedor adversário se empulhar.
O alemão bradava divertido com seu sotaque carregado da colônia:

- Ferreirrinha, o teu filha vai serrrrr 15!
- Deus me livre!
- Vai serrr! Escrrreve o que eu tô dizenda, vai serrrr. Ya, ya!

Certo dia, pensando numa maneira de azucrinar com a paz do amigo, o alemão Jonas propôs:

- Ferreirrinha, porque tu não párra de influenciarr essa currri, e dexa ela escolherr?
- Como assim alemão? Mas tu é bem burro mesmo... A criança só tem um ano. O vocabulário dele se resume apenas em: papai, mamãe, xixi e cocô. Não tem discernimento algum...
- E tesde cuando um torcedorrr ferrenho possui discernimento Ferreirrinha?

Pois contra a lógica, não há argumentos.
Ficou, portanto, acordado em contrato firmado no cartório da cidade, que o garoto assim que começasse a engatinhar, seria posicionado em frente a duas camisetas distintas fornecidas pelo empório do alemão Jonas.
Se o menino escolhesse a camiseta do 15 de Novembro, Ferreirinha teria de passar a humilhação suprema de comprá-la, e jamais, JAMAIS tentar influenciar o garoto a demover sua escolha. Se ele engatinhasse para a camiseta do Novo Hamburgo, o alemão teria que dá-la de graça, além de apadrinhar o garoto na escolhinha de futebol.
Finalmente chega o dia da aposta. Ferreirinha desponta na esquina, com o garoto debaixo do braço suando frio e tentando parecer calmo. Coloca o bebê de gatinhas em cima do balcão enquanto o alemão vai buscar as duas camisetas.
Quando ele volta, Ferreirinha se da conta do embuste pretendido pelo alemão Jonas. A camiseta do 15 era oficial. Amarelinha, lustrosa e radiante, um verdadeiro chamariz aos olhos da criança. A outra camiseta, era totalmente branca, com exceção de um pequeno brasão azul do time do Novo Hamburgo costurado no lado esquerdo. Ferreirinha protestou:

- Ma alemão filadaputa! Que palhaçada é essa?

E o alemão se fingindo inocente:

- Ué, é a camiseta do teu time.
- Essa não é a camiseta do meu time. É uma camiseta branca com um brasão muito do mixuruco!
- É que eu não terrr a camisa do Novo Hamburrrgo. Aqui achente só compra material de primeira linha.

E assim foi... Um bate boca que se estendeu por duas horas consecutivas. Quando a criança não agüentava mais, finalmente, os dois concordaram em tentar a aposta assim mesmo.
A três passos do garoto, foram colocadas as duas camisetas estendidas com o cuidado de não ter ninguém atrás para influenciar. Soltaram o garoto que já saiu engatinhando... Surpreendentemente foi direto para a camiseta do Novo Hamburgo.

- SHEIZ!- Praguejou o alemão.

Ferreirinha mal podia acreditar. Pegou o garoto no colo triunfante pela vitória, gritava aos pulos:

- É Novo Hamburgo, é Novo Hamburgo olê, olê, olêêêê!

Nem o Alemão conseguiu ficar brabo com aquela divertida derrota. Sorriu inebriado pela alegria do amigo, e protestou:

- Não faleu, non faleu. Fosse treinou o carota... Non faleu!

O menino saiu do empório carregado no colo, vestindo a insossa e insípida camiseta branca e o majestoso orgulho paterno. Não conseguia compreender toda aquela agitação mas carregava consigo, a mística verdade de uma predestinação clubística. Ele agora fazia parte de uma torcida de futebol...
Daquelas que buscam esperanças no âmago da insensatez, forças nas adversidades atrozes, e adoração exageradamente incondicional. De hoje em diante, para aquele pequeno torcedor a glória jamais será efêmera. Estará sempre ali presente na bicanca do time; cujo maior objetivo não é o gol como se pretende, e sim, o gol como se imagina.