Borboletas Desgarradas
Já estava quase dormindo no fétido sofá da sala, quando escutei as insistentes batidas que abalavam a porta do JK.
Eu que não estava com ânimo pra nada, não me dei nem ao trabalho de levantar.
- Qui é?
- Ô Evandro! Abre esta porta!
- Tô dormindo. Volta outra hora.
- Abre logo pô! Abre que eu trouxe vinho.
Vinho... Ah, o néctar dos deuses e dos ébrios. A bebida dos extremos. Quem estava tentando entrar, realmente sabia a senha mágica. Demorei um tempo procurando as chaves que eu ainda tenho o dom de perder nesse cubículo. Dessa vez, elas estavam em cima da geladeira. Abri com certa dificuldade as trancas, ferrolhos, e girei a maçaneta. Era o Otelo, mais conhecido como Sentinela.
- Mas que demora! Pô cara, vim pra cá porque eu tive que sair de casa... Não agüentava mais aquele pessoal tentando me tirar da sarjeta.
- Sei...
- Posso entrar?
Dei um passo para trás desbloqueando a passagem. Quando passou por mim, Sentinela me alcançou o garrafão de vinho já pela metade.
- Como é? Vamos sair hoje à noite?
- Estou sem grana. Por sorte você apareceu com este vinho.
- Olha, eu tenho umas passagens de ônibus, uns trocados que peguei antes de sair de casa e... Tchãran!
Tirou a mão do bolso, e revelou a palma com dois cogumelos. Fui para a cozinha e preparei a infusão. Sorvemos rápido o líquido que desceu queimando por nossas gargantas sedentas de alucinação, êxtase, e uma fortuita sensação de bem estar.
Ficamos um tempo em silencio, permitindo ao corpo se absorver. De repente no cubo de imagem televisivo, passei a assistir a apresentadora do telejornal, nua, com seus portentosos peitos deitados sobre a mesa. Ela ditava com sua costumais seriedade, os índices da bolsa de valores. Parecia não tomar conhecimento que estava sem roupa alguma. Sentinela sentou-se no sofá e riu como se houvessem lhe contado uma anedota hilariante.
- Cara... Precisamos sair daqui! Isso vai ser interessante.
Jogamos-nos porta fora. Nem me lembro de ter fechado as trancas.
Pegamos um ônibus que nos levou por alamedas disformes de nossa própria imaginação. Os demais passageiros reprovavam nossa conversa alta e nossas atitudes extremadas com olhares inquisidores. Alternavam-se com rostos de morcego, carneiro e medusas. Uma sombra negra parecia sair da ponta de meus dedos. Tentei livrar-me dela sacudindo as mãos. Sentinela avisou cutucando minhas costelas:
- Ó Evandro, já chegamos no centro. Vamos tomar uma cerveja?
Descemos do ônibus que estava coberto de merda. Ao sair encostei meu ombro na porta e gritei:
- Puta que o pariu! Que nojo!
O motorista, um gárgula verde com grandes presas expostas para fora da boca despediu-se:
- Adeus! Cambada de maluco...
Procuramos por um bar. Enquanto eu caminhava, parecia que o asfalto distanciava-se de minhas pernas e por incrível que pareça, Sentinela me acompanhava nas alturas, segurando com força minha jaqueta. Ele apontava pra um poste de luz e dizia:
- Olha mãe! Olha, que lindo por do sol!
Deitada na calçada, uma mendiga arreganhava sua gengiva sem dentes e suplicava abrindo as pernas:
- Me comam. Me comam, por favor!
Comecei a ficar assustado... Algumas moscas farejadoras de medo sobrevoavam nossas cabeças. Finalmente encontramos um boteco aberto e entramos rápido. Lá dentro, havia apenas dois bêbados e o dono assistindo televisão. Um dos bêbados estava dormindo com um copo de pinga na mão. O outro bêbado conversava com ele sem obter respostas. O dono nos perguntou:
- O que vão querer?
Ele tinha um imenso corte aberto na testa onde dava para ver o pedaço branco de seu crânio. Sentinela pediu:
- Uma cerveja, dois copos e dois ovos.
Dentro do pote de ovos havia olhos em conserva. Não pude comer aquilo. Sentinela comeu os dois e levantou a camisa. Estava tentando passar a mão pelo umbigo. Finalmente conseguiu romper a carne que fez um estalinho nojento Puf... E ficou ali coçando o estomago.
Ficamos conversando alguma eternidade sobre coisas sem sentido, até que decidimos ir embora. Todas aquelas cenas desconexas nos angustiavam. Levantamonos derrubando tudo em volta. Garrafas, copos e pratos se espatifaram no chão. O dono rançou:
- Que merda é essa? Vão ter que pagar porra!
O bêbado que estava dormindo acordou. Ajoelhou-se e começou a lamber a cerveja do chão imundo. Os cacos de vidro cortavam sua língua deixando um rastro vermelho por onde passava. Não pude agüentar aquilo, falei pra ele parar e vomitei. O cara do bar enfureceu-se. Pegou um cassetete debaixo do balcão e me acertou nas costas. Aquilo doeu pra caralho. Saímos porta afora com o dono do boteco e os dois bêbados correndo atrás de nós. Quando alcançamos a esquina olhamos para trás, já não dava pra ver nossos perseguidores. Sentinela apontou um ônibus do outro lado da rua:
- Eu vou voltar pra casa. Não fico mais nesse hospício.
Atravessou a rua correndo e um carro que passava em alta velocidade lhe estraçalhou o corpo. Decidi que eu também tinha de voltar pra casa...
Entrei no primeiro ônibus que vi, recostei minha cabeça no vidro, fechei os olhos e tentei não ser tragado pela escuridão.
Eu gostaria que fosse ao menos uma possibilidade, todos nós sairmos ilesos daquele macabro estudo etimológico.
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