14.9.06






















Perdição


Roxane, you don´t have to wear that dress tonight. Walk the streets for money. You don´t care if it´s wrong or if it´s right- Police


Nada naquela mulher me inspirava confiança...
Quando a conheci, ela trabalhava fazendo serviços bancários para uma fábrica de peças automotivas. Aproveitava sua singular protuberância abdominal, fruto de noitadas regadas à cerveja e barbitúricos, para se fazer passar por grávida e ludibriar as imensas filas do banco. Depois, desperdiçava o resto da tarde, jogando sinuca ou pinball por dinheiro, num boteco pouco movimentado da Praça 12 de Outubro.
Foi lá, que eu inconsequentemente a desafiei para uma partida de sinuca.

Enquanto me prostrava apoiado no taco, observava Jovânia, deitando seus imensos peitos no feltro verde da mesa. Numa só tacada, ela espalhava o jogo produzindo uma barulheira dos diabos. Colocava uma bola na caçapa, e outra já prontinha na boca. Às 17h20min pontualmente, tomava um martelinho, encerrava qualquer aposta pendente, e ia embora terminar o expediente.

Senti que começava a me afeiçoar por Jovânia, mesmo tendo plena consciência que estava me metendo em mais uma encrenca.
Transávamos no banheiro masculino, escorregando no mijo acre, tentando não fazer barulhos exaltados que atraíssem os curiosos. Depois, dividíamos uma porção de fritas e algumas experiências existenciais.

Jovânia me contava sobre seus inúmeros empregos enfadonhos e mal remunerados; sobre suas aventuras em viagens sem destino ou sobre seus vários amantes brutos e ciumentos. Eu, que já vi, ouvi, e passei por tanta barbaridade, comecei a me espantar com a naturalidade com que aquela mulher desfiava seu rosário de bizarras vivências.

Aos nove anos, Jovânia morava com a mãe. Um dia, a velha morreu sentada na sala. Estava assistindo a novela das oito e parece que inexplicavelmente entrou em combustão espontânea. Pelo menos conseguiram salvar a televisão...
Depois, Jovânia morou com o pai por um tempo, e fugiu de casa aos 14 anos pegando carona numa estrada rumo ao sudeste. Sonhava em se tornar apresentadora de programa infantil. Ironicamente, realizou seu desejo fazendo programa para pedófilos nojentos. Cresceu acreditando que a sociedade é um mundo hostil, e que para sobreviver, ela teria que abrir mão de qualquer reserva de escrúpulo.

Freqüentou cabarés de quinta categoria, instigando os freqüentadores a sempre lhe pagar uma dose extra. Secava uma garrafa de Martini Bianco, antes de conseguir chupar qualquer caralho murcho e mal lavado que lhe botassem na frente da cara.

Não demorou muito para pegar barriga e amargar uma temporada sem “clientes”. Decidiu não abortar... Teve o menino, a quem chamou pelo estranho nome de Poeta, e deu ele pra uma amiga criar em troca de um Chevette marrom com frente de tubarão. Visitava a criança esporadicamente apresentando-se como sua madrinha, até perder contato com o garoto quando ele tinha três anos de idade. Ela concluiu o assunto me dizendo que ele era a coisa mais importante da vida dela.

Jovânia me listou uma dezena de cidades e cabarés por onde passou, até que finalmente conheceu um caminhoneiro chamado Flávio Sérgio. Ele agradou-se da companhia daquela espirituosa prostituta, e sugeriu que ela viesse morar com ele numa cidadezinha do interior mato-grossense. Lá, ninguém saberia do passado de Jovânia e ela poderia viver cuidando da casa. Com sorte, arranjaria um emprego, teria filhos, cultivaria um jardim e morreria absolvida dos pecados pregressos. Relutante por desconfiar desta oportunidade que a vida lhe oferecia, Jovânia aceitou o convite e embarcou na boléia do caminhão.

Casou, e foi morar na casa de Flávio Sérgio, vizinha a da mãe do caminhoneiro. Quando o marido saía para trabalhar, Jovânia ia para a casa da sogra, jogar canastra e beber licor. Infelizmente seu espírito arredio não conseguiu aquietar-se. Embriagada de licor e alegria, certo dia, não pode se conter, e beijou a sogra na boca. Despiram-se e transaram sobre as cartas esquecidas na mesa. No outro dia pela manhã, Jovânia foi expulsa de casa a vassouradas pela mulher que enlouquecida de remorso gritava:

- Vagabunda! Você anda traindo meu filho, sua cadela!

Pegou carona pro sul, num caminhão tão negro como a promessa de seu futuro. Estava decidida em aposentar-se da putaria. Passou então, a cambiar de emprego, cada um, não durando mais de dois meses. Foi nesse período que a conheci.

O que mais me fascinava, é a mecanicidade com que Jovânia me contava tudo aquilo. Não havia nenhuma lágrima, riso ou um pedido superlativo de pena. Eram apenas fatos.
Fatos vomitados com a tranqüilidade de quem bebeu muito da vida; e que agora precisava eliminar o excedente.

Eu sabia que o passo a seguir era perigoso... Tão perigoso quanto beijar uma cobra venenosa. Tomei suas mãos nas minhas, e convidei-a vir morar comigo. Jovânia me respondeu que adoraria, com um sorriso meio cínico, meio agradecido.
Dividir miséria para se somar tristeza e desgosto... Talvez, essa seja a coisa que pobre saiba fazer melhor na vida.

Naquela mesma noite, Jovânia me apareceu em casa, carregando uma única mala. Tinha ali dentro tudo que ela havia conquistado de material até então. Largou tudo no chão e me abraçou dizendo:

- Prometo não te decepcionar.

Tive um calafrio e fechei a porta.

1 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Cara, muito bom.

Parabéns!!

Perci

8:07 AM  

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