27.5.06



















Tipos Duros

As coisas estavam dando errado fazia tempo e pensei que seria bom dar uma revisada em mim. Peguei a bicicleta e rodei o Malecón inteiro até Marianao. Eu tinha meio que abandonado os santos e América já tinha me dito que eu devia ter um santo protetor, mas não queria me meter a fundo. Porque é assim: você se dá bem e deixa tudo de lado. Quando as coisas vão mal, então você se lembra dos santos.
América estava carregando uns baldes de água de uma torneira muito baixa que tem na calçada. Naquele cortiço nunca tem água. Ajudei-a um pouco porque ela é velha demais e estava suando. Pouco depois, balde a balde, já tínhamos quase enchido o tanque, quando se formou uma algazarra nos fundos do cortiço. Uma mulher estava tendo um ataque de convulsões no meio do corredor.
- É que ela está dando passagem para um morto. Me espere aqui que vou ajudar – me disse a velha, e foi para lá.
Eu queria levar mais uns baldes para terminar e América me atender. Não podia ficar o dia inteiro em Marianao. Além disso, naquele cortiço a gente sempre se complicava. Tem sempre bagunça e a polícia aparece logo. Nisso, América me gritou, assustada:
- Pedro Juan, venha cá, filho, venha cá!
A mulher não se livrava do morto. Quando cheguei no fundo do corredor já se aproximavam outras mulheres.
- Entre aí e baixe ele, filho! Despendure ele, misericórdia de Deus.
Entrei no quarto da mulher. Seu filho estava pendurado de um fio elétrico em volta do pescoço. Estava nu, coberto de cortes, com sangue pelo corpo todo. Um sangue seco e escuro. Algumas feridas eram profundas.
- Chamem a polícia!- gritei, e ao mesmo tempo puxei uma cadeira e tentei soltá-lo mas o cara era corpulento e forte. Pesado demais. Não consegui desfazer o nó do fio elétrico. Estava frio e duro como gelo e o sangue começou a sair outra vez de algumas feridas e me sujou.
América estava dando uns passes na mulher e borrifava-lhe água fria, mas o morto continuava. No fim a mulher desmaiou e caiu no chão. Nesse momento, chega outro vizinho. Se abraça ao enforcado e começa a chorar e a beija-lo. Pede-me que o ajude a solta-lo.
Eu não estava entendendo nada. Era um cara duro do cortiço. Via-se que era de um aço duríssimo, mas estava beijando o morto na boca e tinha os olhos rasos de lágrimas. Por fim o desenganchamos e descemos.
O sujeito o carrega, deita-o na cama, e me diz:
- Me deixe sozinho. Vou limpar ele.
Na verdade, me alegra que alguém cuide do morto. Já posso ir embora. Estou com sangue por todo lado e quero tomar um banho. América afinal fez voltar a si a mãe do enforcado. Então olho a porta; está cheia de gente olhando. Ninguém se atreve a entrar no quarto. Umas mulheres fazem o sinal-da-cruz e rezam. América tenta ajudar o cara que está lavando o morto, mas ele a expulsa dali:
- Já disse pra me deixar sozinho. Vão embora daqui.
América me agarra pelo braço e me leva para seu quarto.
- Sente aí que vou fazer um café. Hoje não posso mais dar a sua consulta. Tem morto fresco no caminho. E muito sangue.
- O que aconteceu aqui?
- Esse rapaz que se enforcou era bicha. Desde menino sempre comeram ele. No Centro de Reeducação de Menores. E ele gostou. Foi veado a vida inteira porque era bonito, um cara durão, mas não gostava de mulher. E sempre amargurado. Olhe só o que fez. Se cortou com a faca e depois se enforcou. Tem de estar louco pra se machucar tanto. Sabe o que ele fez ontem de tarde? Estava montando um cavalo no terreno aí de trás, mas bateu tão duro que o cavalo empinou várias vezes até que derrubou ele. Bom, pois ele começou a dar punhaladas no pescoço do cavalo e matou o bicho. Depois saiu correndo e sumiu. Parece que voltou de madrugada e se enforcou.
- E a mãe dele não estava no quarto?
- Não. Ela às vezes sai por aí com homens, e chega bêbada. Às vezes fica sumida dois ou três dias.
- E quem é esse que me ajudou a descer o cara?
- Um vizinho daqui. Os dois se davam faz tempo. Eu não entendi nunca. Esse homem tem mulher e filhos e é um sujeito bonito, de peixeira e de briga com a polícia. Mas, bom, parece que se gostavam.
Tomei o café. América me preparou o banho, e quando comecei a me ensaboar, a polícia chegou e nos levou para depor na delegacia. Naquele dia também não pude me consultar e minha roupa se fodeu e tive que jogar fora porque as manchas não saíram nunca.


Pedro Juan Gutiérrez - Triologia Suja de Havana; ed. Companhia das Letras

1 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Cara, muito legal...
Parabéns pelo blog!

Arnaldo Sanches

3:29 PM  

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