Com hora marcada
Moro no oitavo andar de um prédio já bastante antigo, e devido a pintura descascada- multi-colorido. Meu quarto pega o sol da tarde, que desbota a madeira dos móveis e transforma este espaço de 3x3, em um calcinante forno.
Minha janela dá quase no mesmo nível, para o consultório odontológico do edifício em frente. Quando eu acordo, devido ao calor, vou até a janela assistir aos infindáveis episódios de obturações, ou a saga dos tratamentos de canal. Muito melhor que a tv. E ainda com a vantagem, de não ter que escutar aquela conversa inconveniente do dentista. Porque será que eles nunca têm nada de interessante para falar? É sempre a mesma conversa: o tempo isso, o governo aquilo... A minha teoria, é de que os dentistas somente lêem as revistas de fofoca e os semanários antigos que ficam esquecidos em suas salas de espera.
Voltando ao consultório... A cadeira odontológica fica perpendicular ao meu ângulo de visão. Às vezes, dependendo da inclinação e se a paciente está ou não de saia, consigo vislumbrar alguma pernoca. Com sorte, até vejo uma calcinha furtiva se debatendo quando a broca atinge o nervo do dente.
Mas devo confessar que nenhuma paciente se compara a beleza da assistente do dentista. Ela é simplesmente, e genuinamente, linda. Tem os cabelos loiros, escorridos até os ombros, balançando em ondulações simétricas. A pele é bem alva, quase parece rasgar ao toque, e carrega na face um pesar dolente que me entristece só de mencionar.
Eu sou capaz de ficar horas intermináveis olhando para ela. Chego até mesmo a perder a noção do calor. Tento inutilmente descobrir seu nome ou alguma outra informação adicional.
Posso ver que o cretino do dentista, sempre lhe censura as ações. Depois que o paciente sai, ele descarrega nela um amontoado de impropérios e ofensas que chegam a revoltar minha inércia.
Hoje, ele passou dos limites. Pegou com violência a bandeja de instrumentos que estava na mão dela, e atirou de encontro à parede.
Humilhada, ela juntou tudo, limpando as lágrimas no ombro do uniforme.
Coloquei uma camisa, e saí correndo porta afora. Atravessando a rua, entrei no prédio em frente, e pedi ao ascensorista que me levasse ao oitavo andar. Eu batia os dentes de raiva...
As portas se abriram no exato momento que o ascensorista anunciou:
- Oitavo andar! Tenha um bom dia.
Eu era o príncipe em resgate. O herói mitológico. Atravessava o corredor imponente, olhando as placas das portas. Finalmente encontrei o consultório do doutor Alberto Caserna. Entrei sem bater na porta. Achei que seria muito melodramático chuta-la colocando os punhos na cintura e bradando:
- Eu vim para salvá-la!
Sentada junto à mesa da recepção, estava ela... Chorando por trás das mãos em concha. Vi seu nome escrito numa placa de identificação - Isadora. Quando notou minha silenciosa presença, Isadora disfarçou o pranto me cumprimentando com uma voz balbuciante:
- Boa tarde.
Eu me aproximei dela e disse:
- Você não tem que suportar isso.
Inexplicavelmente ela pareceu me entender. Olhou-me com profunda compaixão e disse:
- Você não entende...
O dentista abriu a porta de seu consultório e colocou a cabeça para fora. Quando o vi, avancei cego de raiva em sua direção e desferi um soco na sua boca. Pude escutar o barulho de algo indefinido se quebrando.
- Agora conserte a sua própria boca, otário!
Isadora levantou-se da cadeira e veio em minha direção. Abri os braços para recebê-la. Ela me beijou, ignorando o corpo do homem que se contorcia aos nossos pés. Seu gosto era doce. Mescla de chicle e hálito púbere. Refulgiamos num flamívolo de infindáveis instantes, quando subitamente, dissipamos...
Isadora afastou seu rosto do meu e sorrindo me disse:
- Tchau.
Delével menção, que se transmuda, ela subitamente virou-se acudindo:
- Papai! Você está bem?
No mesmo instante que a compreensão daquelas palavras me assaltava, percebi que as esperanças acalentadas por um amor idealizado se perdiam. Nunca conheci uma história de amor que tenha terminado bem, quando já se inicia socando o sogro na cara.
Voltei para o meu quarto e tapei a vista pendurando um lençol na janela.
Tenho que aprender a bloquear o calor dos sentidos e dos sentimentos...
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