7.12.05























Jorge Furtado, cineasta e roteirista - é um dos idealizadores da Casa de Cinema de Porto Alegre.
Tem no seu currículo o instigante curta Ilha das Flores de 1989.
Ultimamente Jorge têm rodado alguns filmes todos altamente recomendados por mim, principalmente o nostálgico Houve uma Vez dois Verões de 2002 e O Homem que Copiava de 2003.
Ano passado, Jorge adaptou para o cinema o conto Meu Tio Matou um cara, do livro de ficção de mesmo nome editado pela L&PM Pocket.
É deste livro que extraí o conto que segue:


Paraíso

Qualquer pessoa sonha com o paraíso. Só que cada pessoa sonha com um paraíso diferente, o seu paraíso.
Elevador abre a porta. Beth entra no elevador. O ascensorista é um Anjo.
- Tudo bem?
- Tudo.
- A senhora tem bagagem?
- Não, não, só isso mesmo.
-Qual é o andar?
- Paraíso. Olha aqui.
Ela mostra um cartão para ele. Ele examina.
-Perfeitamente.
Ele fecha o elevador e marca no painel: P. O elevador se move, eles ficam em silêncio alguns segundos.
-Muito movimento hoje?
- Normal, terça-feira.
- Sei.
- A senhora morreu como?
- Atropelada. Por um ônibus.
- Sei. Bom que é rápido.
- Foi sim. Nem vi. Quando abri o olho já tinha morrido. Demorado este elevador.
- Andar alto. Estamos chegando.
O Anjo abre a porta de um maravilhoso apartamento. Beth entra. O anjo, como um boy de hotel, abre o quarto.
- Bem-vinda ao paraíso.
- Isso é o paraíso? Parece um apartamento.
- É seu.
- O quê? Este apartamento é meu?
Ele abre a cortina.
- Claro. Dê uma olhada. Sacada com churrasqueira. Piscina. Vista para o mar.
- Meu? Tudo isso? Tevê 62 polegadas. Sofá de couro. Mesinha que dá para botar o pé. Revistas desta semana. Telefone branco sem fio. Isso é o paraíso!
- Foi o que eu disse.
- O que está passando na televisão?
- O que você quiser. Aqui é o paraíso.
Ela liga a televisão. Está passando ``A Noviça Rebelde``.
- A Noviça Rebelde! Adoro este filme! (canta) Dó, um dia, um lindo dia... Tudo isso é meu?
- Para a eternidade.
- Mas que paraíso!
- Pois é o que eu estou lhe dizendo. Frigobar.
O Anjo abre o frigobar.
- As despesas com o frigobar são por nossa conta, tire o que quiser. O café-da-manhã é servido até a hora que a senhora quiser, ovos mexidos, não muito tostados, molinhos, como a senhora gosta.
- O que pode ser melhor que isso?
Murilo Benício sai da cozinha. Traz uma bandeja com empadinha e suco.
- Dona Beth, as de galinha são as que têm o arranjo com azeitona. Só o arranjo, azeitona tem gosto muito forte. As de camarão têm o arranjo de cenoura. Tome cuidado que estão quentes, não sei se eu acertei na massa. Coloquei duas pedras de gelo no suco, se a senhora quiser mais, é só chamar. Com licença, eu vou regar o seu jardim.
Murilo Benício põe a bandeja na mesa e sai. Beth olha para o Anjo.
- Esse rapaz parece muito com o Murilo Benício.
- É o Murilo Benício.
- Mas isso é o paraíso!
Infelizmente, o que para uns é o paraíso para outros é um inferno. E o que é pior: o que hoje é um paraíso, no fim de semana que vem pode virar um inferno.

Beth abre a porta do apartamento para o Anjo.
- A senhora chamou?
- Chamei, chamei, entra aí.
- Algum problema?
- Não, problema nenhum. Este é que é o problema.
- Não entendi.
- Isso aqui está ficando um pouco monótono, sem problema nenhum. Todo mundo fala mal dos problemas, se queixa que está cheio de problemas, mas sem problema nenhum também não tem muita graça. Problema ocupa a pessoa, distrai. A gente comenta que está com um problema, puxa assunto, fala do problema dos outros... É divertido.
- O paraíso é seu. Se a senhora quer um problema, não tem problema. Que tipo de problema a senhora quer?
- Bom, nada de grave. Não quero problema de saúde, nem de dinheiro. Isso é certo.
- Quem sabe um problema com seu empregado?
- O Murilo Benício? Pode ser... Problema com empregado distrai bastante. Ele engordou um pouco, eu acho. E às vezes eu não entendo o que ele diz. Mas pode ser implicância minha, eu também estou procurando problema em tudo.
- E se ele bebesse e faltasse ao serviço?
- Boa idéia. O Murilo Benício podia beber, dar uns vexames, faltar ao serviço. Anotou?
- Anotei. Mais alguma coisa?
- Tem sim, essa idéia de Noviça Rebelde para a eternidade foi um erro. Não agüento mais este filme. Eu gostava de reclamar da televisão, ficar pulando de programa em programa e falando mal.
O Anjo faz anotações.
- Programas ruins. Certo.
- E chuva. No paraíso não chove nunca? Estou com saudade duma chuvinha.
- A senhora que sabe, anotei tudo: chuva, programas ruins na televisão e um empregado que bebe, dá vexame e falta ao serviço.
- Isso. Para começar.
- Vou providenciar.
O Anjo sai, Beth liga a televisão. Está passando a Noviça Rebelde. Murilo Benício entra com as empadinhas. Tem cara de choro.
- Dona Beth, a senhora pode me dispensar do serviço hoje?
- Por quê?
Ele começa a chorar.
- Eu não estou me sentindo muito bem Dona Beth.
- O que foi?
Murilo senta, chorando.
- Acho que foi uma empadinha que eu comi.
- Beth se aproxima, cheira.
- Só se for empadinha de cachaça! Você andou bebendo?
- Que é isso, Dona Beth? Acho que eu sou alérgico a azeitona. Eu...
Murilo vomita no sofá.
- Meu sofá de couro!
Uma eternidade no paraíso parece uma contradição em termos, como uma bola quadrada. Por melhor que seja o paraíso, depois do terceiro dia de chuva uma hora parece ter uma eternidade.

Beth abre a porta para o Anjo.
- Chamou?
- Faz mais de meia hora! Isso aqui está um inferno! Não pára de chover, não tenho mais um lençol seco.
- E o Murilo Benício?
- Não aparece há três dias. E o pior é que na televisão só passa jogo de golfe. Você acha que tem sentido assistir golfe na televisão? Tem um buraquinho, uma bolinha branca e grama. Só. E um gordinho de boné. E os caras ficam falando sobre grama. Parece uma novela para vaca. E leva mais de duas horas uma partida. Três dias sem empregado, chovendo sem parar, e na televisão só passa jogo de golfe.
- Você é que sabe. Na televisão pode passar só o que você gosta.
- Mas não só Noviça Rebelde. Pode variar. E pode ter uma coisa ruim nos outro, só para eu dar uma olhadinha.
- Quem sabe um controle remoto?
- Isso! Eu sabia que estava faltando alguma coisa. Um controle remoto na minha mão, pessoal, com meu nome escrito nele. E chega de chuva.
- Certo.
- Chuvas de no máximo quarenta minutos, no meio da tarde, para não atrapalhar o trânsito, entre três e quatro horas da tarde.
- Todos os dias?
- Não, duas vezes por semana, no máximo.
- Que dias da semana?
- Sei lá. Variado, eu prefiro não saber.
- Anotei.
- Eu também preciso de lençóis secos.
- Mais alguma coisa?
- Sim. E o pessoal, cadê?
- Pessoal?
- As outras pessoas, o pessoal lá da firma.
- Cada uma está no seu próprio paraíso.
- E a Sandrinha? Sabe uma de óculos?
- Sei. Esta preferiu ir para o inferno.
- A Sandrinha foi para o inferno?
- Foi. Disse que marcou encontro com um pessoal e pediu para ir.
- Grande Sandrinha. Aquilo era uma peste! O inferno deve ser divertido.
- Mas o clima é péssimo. Um calor desgraçado. E o pior é que as pessoas jogam lixo no chão, entope os bueiros, chove, alaga tudo, aquele calor miserável. E as baratas foram para lá também.
- O paraíso seria um inferno com praia não seria? Um lugar onde chove de vez em quando, outras vezes faz sol. Onde a gente possa encontrar o pessoal. Não sempre, de vez em quando.
- Já sei o que a senhora quer. Me acompanhe por favor.
Beth sai acompanhando o Anjo. Entram no elevador. O Anjo aperta no T.
- Deixa ver se eu entendi: a senhora quer uma televisão com controle remoto, alguns programas ruins outros bons, chuva de vez em quando, em dias variados, e alguns problemas. E quer encontrar o pessoal, não sempre, de vez em quando.
- Isso.
- Chegamos. Pode sair.
Beth sai.
- O que é isso?
- A Terra. Faça bom proveito.
Fecha a porta do elevador. Beth se vira e está numa calçada, cheia de gente.

1 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Eu não gostei do Meu tio matou um cara. Mas do texto sim!

10:13 AM  

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