Agora, não mais
Joana vive tendo pensamentos com a profundidade de um pires. Hoje estamos mais uma vez presos num engarrafamento absurdo, quando ela me veio do nada, com a seguinte constatação:
- Se fossemos percentualizar, acho que já passei uns 10% da vida assistindo novela.
Típica afirmação que não se tem resposta nem conclusão a ser dita. Resolvi apelar para o sarcasmo:
- Sorte sua...
- Se não fosse este engarrafamento, eu ia conseguir assistir todas às 3...
- Três?
- Sim. A novela das 6, a das 7 e a das 9.
- Três horas ininterruptas de novela?
- O que representa 12,5% do meu dia.
- Por favor, Joana pare de falar. Você está me irritando...
Certas espécies humanas necessitam ser tratadas com doses homeopáticas de má educação e impaciência. Além de funcionar por alguns preciosos instantes fazendo com que se calem, arrefece um pouco seus egos inflados.
Permanecemos em silêncio dentro do carro. Ligo o rádio para que o tempo passe mais depressa. O idiota do motorista da frente demora a arrancar, deixando um gigantesco espaço onde os demais carros enfiavam-se na mesma pista. Buzinei. Ele olhou pelo espelho como quem diz:
- O que é?
Eu esbravejei:
- Vai tomar no teu cu!
Cara, eu estou ficando louco... Ou será que estou ficando normal? Joana aumentou o volume do rádio exclamando:
- Eu adoooooro esta música! Como se eu fosse flor, você me cheira!
Já não bastava ter que agüentar o dia inteiro esta vaca trabalhando ao meu lado, ela ainda tinha que morar perto da minha casa para sempre aproveitar uma caroninha?
Parece que é de propósito... A primeira coisa que Joana faz todo dia, depois de sentar a sua imensa bunda no banco do carro, é mudar a estação do rádio. Ela gosta de pagode, axé, funk sertanejo ou qualquer música enjoativamente romântica. É uma daquelas cretinas que considera cutícula inflamada uma doença terminal. Vive reclamando da vida, mas não é capaz de mover uma palha pra fazer as coisas acontecerem. Quando nos encontramos em qualquer dificuldade, ela evoca sua falsa esperança no mundo para se passar por otimista. Sua voz é estridente, seu cheiro nojento, seus pensamentos repugnantes. Joana é a minha definição de uma criatura insuportável.
O destino às vezes nos prega estas peças. Ele nos amarra com certas pessoas que não combinam em nada com a gente e não satisfeito, ele ainda aperta o nó.
Joana abaixa o volume do rádio e me pergunta:
- Zé, o quê é que você tem? Parece que algo está lhe incomodando.
Eu não consigo mais suportar mais isso... Agora essa idiota me vem com um diagnóstico leigo da minha complexa amplidão existencial.
Explodo num rompante de fúria socando o painel do carro:
- Joana! Vai a merda e me deixa em paz!
Ela se cala.
O trânsito se cala.
O mundo se cala...
Parece que exagerei na minha dose homeopática de má educação e impaciência. Joana vira o rosto para a janela e começa a soluçar. Noto que fui longe demais e tento remediar procurando palavras:
- Hã... Desculpe Jô. Eu estou mesmo nervoso.
Ela aproveita o transito parado e num movimento inesperado abre a porta e sai correndo do carro.
Procuro impedi-la chamando seu nome e pedindo desculpas mas ela não ouve. Está agora correndo desesperada em meio aos carros chorando. Em perspectiva, a imagem é patética...
Eu fecho a porta do carona. O transito se move, e eu permaneço parado pensando.
Ao escutar a primeira buzina, engato a marcha do carro.
Acelero, e tiro o pé esquerdo da embreagem.
O carro patina alguns instantes no lugar, queimando pneu, até se grudar no asfalto e sair rapidamente andando.
Bato com força na traseira do carro daquele motorista idiota, e apago.
Acordo com a cabeça deitada no volante. Minha cara está ensangüentada, acho que quebrei todos os dentes.
Joana aparece de repente e me pergunta:
- Zé, você se machucou?
Eu levanto a cabeça e me recosto no banco.
Tem vidas, que agente não deve mesmo sair de casa...
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