O escritor Paul Auster, mantém nos EUA, um programa mensal na rádio NPR em que basicamente se propõe a ler, histórias reais de pessoas reais.
Algo como ele mesmo denomina de `` um museu da realidade americana``.
Em um ano, selecionou entre 4 mil textos, os que iriam ao ar, e destes, compilou o livro Achei que Meu Pai Fosse Deus e outras histórias verdadeiras da vida americana, que foi publicado este ano, através da Companhia das Letras.
Os relatos surpreendem por serem escritos por pessoas comuns, que tiveram experiências incomuns e neste livro, se revelam.
A seguir, um delicioso conto, sobre um não tão delicioso prato de ervilhas:
Um Prato de Ervilhas
Meu avô morreu quando eu era pequeno e minha avó passou a morar conosco cerca de seis meses por ano. Ela ficava em um quarto que fazia as vezes de escritório para meu pai, o qual chamávamos de `` o quarto dos fundos``. Ela carregava consigo um aroma poderoso. Não sei que tipo de perfume usava, mas era do tipo dois canos, noventa graus de graduação alcoólica, capaz de deixar a vítima inconsciente, tiro e queda. Ela guardava num grande vaporizador e o aplicava com freqüência e prodigalidade. Era quase impossível entrar no quarto dela e conseguir respirar durante algum tempo. Quando ela partia para morar seis meses com minha tia Lillian, minha mãe e minhas irmãs escancaravam todas as janelas e punham o colchão, as cortinas e os tapetes para tomar ar. Depois, passavam dias lavando e arejando as coisas, na tentativa frenética de fazer o odor pungente desaparecer.
Era assim minha avó, na época do infame ``incidente das ervilhas``.
Aconteceu no hotel Biltmore que, para minha mente de oito anos era o lugar mais chique para comer em toda Providence. Minha avó, minha mãe e eu fomos almoçar depois de uma manhã de compras. Pedi um bife à Salisbury, confiante no conhecimento de que aquele nome elegante escondia um bom e velho hamburguer com molho. Quando chegou meu pedido, vinha acompanhado por um prato de ervilhas.
Não gosto de ervilhas hoje. Não gostava de ervilhas então. Sempre odiei ervilhas. É um completo mistério para mim por que alguém comeria ervilhas voluntariamente. Não as como em casa. Nãos as como em restaurantes. E certamente não iria comê-las naquela ocasião.
``Coma as ervilhas``, disse minha avó.
``Mãe``, disse minha mãe com sua voz de advertência. `` Ele não gosta de ervilhas. Não implique com o menino.``
Minha avó não retrucou, mas havia um brilho sinistro em seus olhos que indicava que ela não se daria por vencida. Inclinou-se em minha direção, olhos nos meus olhos, e murmurou as palavras fatídicas que mudaram minha vida.
``Pago cinco dólares se você comer estas ervilhas.``
Eu não tinha a menor idéia do destino iminente que vinha em minha direção como uma bola gigante e destruidora. Só sabia que cinco dólares era uma quantia enorme , quase inimaginável, e, por pior que fossem as ervilhas, havia apenas um prato delas entre mim e a posse daqueles cinco dólares. Comecei a enfiar as desgraçadas goela abaixo.
Minha mãe ficou lívida. Minha avó tinha o ar satisfeito de alguém que baixou um trunfo imbatível na mesa. `` Posso fazer o que quiser, Ellen, e você não pode me deter.`` Minha mãe lançou um olhar dardejante para a mãe dela. Lançou um olhar para mim. Ninguém lança olhares dardejantes como minha mãe. Se houvesse uma competição olímpica dessa modalidade, sem dúvida ela ganharia a medalha de ouro.
Eu, evidentemente, continuava a jogar ervilhas goela abaixo. Os olhares deixaram-me nervoso, e cada ervilha me dava vontade de vomitar, mas a imagem mágica dos cinco dólares flutuava diante de mim e, por fim, engoli a última. Minha avó deu-me os cinco dólares com fanfarras. E assim acabou o episódio. Ou assim pensava eu.
Minha avó partiu para a casa de tia Lillian algumas semanas depois. Naquela noite, no jantar, minha mãe serviu dois de meus pratos favoritos, bolo de carne com purê de batatas. Junto com eles, veio uma grande tigela de ervilhas fumegantes. Ela me ofereceu algumas ervilhas e eu, nos últimos instantes de inocência de minha infância, recusei. Minha mãe lançou-me um olhar frio enquanto despejava uma enorme pilha de ervilhas em meu prato. Então, vieram as palavras que me perseguiriam durante anos.
``Você comeu ervilhas por dinheiro. Pode comê-las por amor.``
Oh desespero! Oh devastação! Tarde demais eu percebia que havia me condenado inadvertidamente a um inferno de onde não havia escapatória.
``Você comeu ervilhas por dinheiro. Pode comê-las por amor.``
Que argumento eu poderia contrapor? Não havia nenhum. Se comi as ervilhas? Pode apostar que sim. Comi-as naquele dia e todas as vezes em que foram servidas desde então. Os cinco dólares foram gastos logo. Minha avó faleceu alguns anos depois. Mas o legado das ervilhas sobreviveu, assim como está vivo até hoje. Se eu mal aperto os lábios quando são servidas ( porque, afinal, ainda odeio aqueles coisinhas horrorosas), minha mãe repete as terríveis palavras mais uma vez:
``Você comeu ervilhas por dinheiro. Pode comê-las por amor.``
Rick Beyer
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