17.6.05




De Repente, um Repente

Este caso aconteceu há mais ou menos uns três anos, quando nossa banda, The Dish Washers, conseguia esporadicamente tocar nos bares da cidade em troca de um couver artístico mirrado.
Naquela vez, havíamos tocado a noite toda, e acabamos de executar a última canção; Eleanor Rigby dos Beatles, cujo refrão no inglês sofrível do vocal Ronaldo tornou-se um: Ahhhh Lucaronli lonli pipou.
As perspectivas de sairmos daquela casa noturna com alguma companhia feminina, parecia cada vez mais remota. Nossa cota de cerveja já tinha estourado, e nada mais restava, a não ser nos sentarmos numa das muitas mesas desocupadas, e pedir a derradeira ``saídera``, antes de guardar nossos instrumentos.
Foi então, que Sérginho, tecladista da banda, começou a rascunhar algo num guardanapo... Escrevia e ria sozinho, nos deixando cada vez mais intrigados:

- Ô Serginho, o quê tu tá escrevendo aí ?

- Acabo de escrever uma musiquinha. Vamos pro palco tocar?

- Epa...Peraí... Sem ensaio, nem nada?

- Ah não precisa. É só vocês me seguirem. Sempre do mesmo jeito. O ritmo é como o do baião nordestino.

- Quê?? Tu enlouqueceu Serginho? Baião não é a nossa praia, o público vai nos matar.

- É só um experimento. E além do mais, o pessoal que ainda está aqui no bar, ainda não saiu por que não conseguiu se levantar. Vamos?

E lá fomos nós, sem nem ao menos ler a letra. O Sérginho parou de frente para o teclado, fez uns ajustes e começou a tocar um baião. Seguimos na medida do possível, enquanto a platéia ia aos poucos silenciando incrédula. Então Sérginho começou a cantar com uma voz desafinada e anasalada:

Meu Deus do céu, eu não sei como é que pode
tê tanta muié que fode, tê tanta muié que fode...

Meu Deus do céu, eu não sei como é que pode
tê tanta muié que fode, tê tanta muié que fode...

Como é pode, tê tantas que tão a fim,
Ma nenhuma da pra mim, ma nenhuma da pra mim.

Meu Deus do céu eu não sei como é que pode
Te tanta muié que fode ma nenhuma da pra mim.

Meu Deus do céu, se vier eu não me mixo
tem muié que faz com bicho.
tem muié que faz ca mão.

Eu não entendo, tem quem faz com objetos
Tem quem faz com o mesmo sexo
Comigo ninguém faz não...
nhão nhão nhão


Quando aquilo que ele chamava de música acabou, a platéia compacta nos observava como um bando de canibais em volta de uma expedição jesuíta. Eu me preparava para desviar da primeira garrafada que viesse em minha direção, quando as palmas das mãos de alguém soaram naquele imenso e aterrador silêncio.
E então, iniciaram-se os aplausos, primeiramente tímidos para depois virarem uma verdadeira ovação. Aplausos, aplausos, e pedidos de mais um, mais um. Extasiados por aquele sucesso inebriante, resolvemos repetir a canção já que não havia tempo de se compor nada diferente. Naquela noite, executamos a mesma canção mais umas cinco vezes.
No dia seguinte, choviam convites para tocarmos nos bares da cidade. Gravamos o repente num pequeno estúdio em um single promocional, e distribuímos em algumas rádios. Um comunicador de uma emissora fm, entediado com a vida, simpatizou com a música e a executou num sábado à noite. Pouco depois, em qualquer estação de rádio que se ligasse, lá estava aquela pavorosa música tocando sem parar.
E a situação assim perdurou por mais umas duas semanas. Quando começaram a aparecer convites para tocarmos fora do estado, os The Dish Washers subitamente se desfizeram... Os motivos foram muitos, mas talvez nenhum deles bom o suficiente. Eu, por não aguentar mais tocar a mesma canção de sempre e outra vez novamente. O Ronaldo trocou de guitarra, e com a grana extra, montou sua tão sonhada banda de metal ópera. O Sérginho frustrado por não conseguir compor um novo hit, entrou em profunda depressão, e hoje fica horas trancado no quarto fazendo variações daquela mesma maldita canção. E Gustavo, o baterista, aceitou a situação pois afinal de contas, ele não tinha talento algum.