Abrindo as comemorações do dia dos namorados, ou armadilha comercial, como o caro leitor preferir, publico a seguir o ``doloroso`` texto da jovem escritora carioca Ana Beatriz Guerra, depois a lírica poesia de Fernando Pessoa e para finalizar, a canção definitiva dos namorados do verdadeiro mestre dos magos Raul Seixas :
Paracetamol
Li em algum lugar que os fumantes buscam a cada tragada a dor primordial: a dor da primeira inspiração. Que sentir a fumaça queimar faringe, laringe, armazenar resíduos nos pulmões, traria a memória atávica do primeiro contato com o mundo: dor lancinante dos órgãos que nunca foram usados; dor dos sons diversos; dor da luz que ameaça por si só escancarar as pálpebras; dor do cordão cortado; dor do contato roubado da mãe. Os fumantes estariam buscando um substituto, um conforto falso e momentâneo, carinho cabendo num bastão de toxinas, carinho que rasga e se alastra, deixando para depois, talvez, futuras dores como a do corpo comendo a si mesmo.
Li em outro lugar que um espírito se prende a um corpo no momento da concepção e esse processo só tem fim nove meses depois, quando a já pessoa é cuspida para o planeta e chora, chora pelo paraíso perdido, pelo desconhecido, por tudo o que ainda vai lhe acontecer. Vida é respiração, que vem e volta, vai e cessa, para começar de novo. Mas fumantes não têm o privilégio da dor primordial. Todos sofremos a mesma, porém lidamos com ela de formas diversas. Uns fumam, outros têm apegos estranhos em relação à figura materna, planejam matá-la, mandá-la para outro continente, ou sonham com alguém que saiba bater aquele bolo...
A partir da dor primordial, tudo é possível. E aí moram as idiossincrasias humanas. Somos nossas dores. Encontramos compaixão através delas, nos sentimos um pouco mais próximos, ou usamos as dores como razão para nos separarmos e nunca mais nos encontrarmos.
Às vezes, quando me lembro que desejo filhos, fico tentando conceber a dimensão da dor de todas as mulheres que já pariram. Mulheres que perderam seus filhos, que se perderam durante o parto, ou na depressão da vida para sempre modificada, na alegria absurda de dar sentido a tudo, no amor incontido e incessante. Fico tentando imaginar se as mulheres têm algum privilégio, se neste momento desigual onde todas nos parecemos, recebemos a dádiva de conhecer os mistérios da vida e da morte, talvez, num lapso, um relâmpago na mente em meio ao sangue, à água que jorra, aos gritos do bebê. Li em algum lugar que o líquido amniótico tem composição semelhante à solução que chamamos de mar. E o que não é o mar se não um útero gigante?
Tento resgatar dentro do meu corpo lembranças vívidas, por serem lembranças da carne, e, dessa forma, somando uma com a outra, calcular o que seria a dor de uma vida. É claro que é impossível, são pensamentos vãos, mas, compondo o panorama de cada uma das pequenas dores, fico cada vez mais perplexa diante dos milagres diários. Perplexa diante de tudo o que vivi e acompanhei, perplexa também pelo que desconheço e possivelmente nunca venha a conhecer.
Lembro da dor de engolir água quando fui tentar nadar pela primeira vez; dor de furar a orelha com os primeiros brincos de borboleta; dor de cair com o estômago no chão nas brincadeiras de pique; dor de luxação; dor causada nos outros por não ser exatamente o que esperavam; dor das primeiras lágrimas derramadas por motivos egoístas; dor de decepcionar; dor de me decepcionar; dor acompanhando a primeira menstruação; dor do primeiro amor não-correspondido; dor do primeiro amor correspondido; dor da primeira penetração; dor dos desencontros; dor da falta do que respirar; dor oca da perda de entes queridos; dor de encontrar um imenso vazio em mim onde caberia o mundo inteiro; dor das ilusões perdidas; dor das pequenas mortes de todos os dias, quando os nossos sonhos se afastam um passo de nós; dor de estender a mão e não alcançar o pé, dores de mudança, dores sempre para o bem, sempre, mesmo que pareça o contrário, mesmo que pareça que vai nos levar para longe, para o outro lado. A dor faz parte da vida. É intrínseca.
[Médicos alimentam pacientes terminais com morfina, para que eles esqueçam o que é se despedir do corpo, da família, das reminiscências, tudo ao mesmo tempo e num só momento. Se entopem e se entorpecem por não desejarem dizer adeus jamais.
A dor confundida com prazer, dor que precisa de um sádico e um masoquista para existir, dor de travas no corpo, na mente, na alma. O tempo inteiro procurando algo mais pontudo, mais perfurante, para machucar e sobreviver, testar os limites da paciência, da tolerância, da irrealização. Dor asfixiante, que não cabe em lágrimas a se derramar, corrompem, parecem cortar a garganta lado a lado, atrás de um terreno menos pedregoso para deslizar em direção ao mar; criando obstáculos para que a vida se realize; inventando argumentos para atrasar a felicidade mais um pouco, só mais um pouco, porque é tão bom sofrer, tão bom pedir colo, mesmo que o colo tenha pênis e não seja ela, sequer se pareça com ela, nossa grande mal-feitora. Aquela que, num ato de loucura, resolveu nos largar aqui, nos tirar de dentro do quentinho, do escurinho, onde tudo está disponível. A dor simbiótica. A dor do útero que chora.
Mulheres talvez sejam sim privilegiadas de alguma forma, por serem lembradas regularmente que a vida se desfaz com a mesma facilidade que ela existe - um sopro de vida -, sem que isso, no entanto, invalide qualquer uma das dores que purgamos entre uma dor e outra, entre um mundo e outro, margens do rio que, inevitavelmente, chega ao mar. E, enquanto se resiste, dói mais ainda, e como gostamos, como reclamamos, como maldizemos, como blasfemamos, inventamos calúnias, mentiras para usar por cima de outras mentiras, dores somadas com outras dores, Marias das Dores, do crepúsculo à aurora sem fim. As tripas postas para fora. A ausência da beleza. Sofrimento por toda parte, nascimento, doença, velhice e morte, em qualquer direção que se olhe.
A carne guarda tudo, inclusive as dores auto-infligidas, as dores cujo causador só conhecemos olhando bem dentro do espelho, tentando resgatá-lo a fórceps antes que seja tarde demais. A dor das primeiras palavras pronunciadas; dor do primeiro mal-entendido; dor dos aprendizados insuficientes; dor dos erros constantes; dor do desespero de quem não vê.
A dor não exige antecedentes criminais, está à disposição de todos que tiveram a coragem de berrar pela primeira vez, de jogar-se aos leões, de oferecer o corpo a todas as mãos que puderem tocá-lo, de sujar sua existência com lama diáfana, de olhar diretamente para o Sol e saber, antes da última imagem, que todas as marcas, rugas, cicatrizes e sinais valeriam a pena, que toda nova célula aprenderia a carregar todos os segredos do início.
A incerteza do amanhã traduzida em novas dores, a permanência nostálgica do passado trancando dores dentro do peito, infartos do miocárdio futuros, derrames vasculares, doses cavalares; dor das opões que não marcamos no vestibular; dor do que não foi e poderia ter sido; dor do que jamais vai ser; dor da viagem que não pode ser feita; dor dos beijos que nunca serão dados; dor dos mil desejos irrealizáveis, enquanto que um, concreto, pode-se tocar com as mãos do corpo, e não as mãos da mente.
Eu te toco agora, marco na pele cada curva sua, decorando o traçado das suas sobrancelhas, o nariz que você não gosta, o movimento dos cabelos, o desenho sensual dos ombros e dos braços, e lembro de novo dela, da dor primordial, espantosamente necessária para que ambos estivéssemos aqui, desdita invariável da vida, que nos junta e nos separa com o mesmo impacto explosivo.
Te encontro aqui, te encontro do outro lado, com a mesma expressão enigmática, com os pecados pagos a chicotadas imaginárias, com a mesma dúvida se o Big Ben ocorreu, afinal.
Lembro que não sou muito diferente de você, gostamos, bem que gostamos de ser pisoteados, de bater com a cabeça na parede, de dilacerar o punho nos cacos do espelho, de comprar soco-inglês em mercado de pulgas, e de inspirar bem fundo, até dilatar por dentro e parecer que vai enxergar o fim.
Ana Beatriz Guerra
AUTOPSICOGRAFIA
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
Fernando Pessoa
Fazendo o que o Diabo Gosta
Casamos no motel
Bem longe do altar
Lua de mercúrio fogo e mel
Não fui o seu primeiro
Você já tinha estrada
Dois filhos um travesseiro e a empregada
Um anjo embriagado
Num disco voador
Jurou que o nosso amor era pecado
Mas a história mostra
Que agente agrada a Deus
Fazendo o que o Diabo gosta
Casamos por tesão
Tesão, tesão, tesão
Bateu o terror não tem mais solução
Te entrego os meus medos
Meus erros meus segredos
Divido minhas guimbas com você
Um anjo embriagado
Num disco voador
Jurou que o nosso amor era pecado
Mas a história mostra
Que agente agrada a Deus
Fazendo o que o Diabo gosta
Quebramos nossas caras
Pra se lamber depois
Amor e ódio é o certo pra nós dois
Casamos no motel
Bem longe do altar
Lua de mercúrio fogo e mel
Raul Seixas
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