Alguns textos do poeta e escritor Fabricio Carpinejar. O link da página está ao lado:

INFÂNCIA DESINVENTADA
Eu confiava em meus irmãos. Podiam estar mentindo, mas confiava. O mentiroso apenas quer convencer a platéia de suas invenções. É o último a acreditar. O mentiroso é generoso - mente pelos outros, não para si. Meu irmão mais velho não conseguia dar conta sozinho de sua idéias. Escavei durante uma semana o quintal porque ele argumentava que do buraco poderia enxergar o Japão. Perdi três sessões da tarde. Saía da aula correndo para prosseguir a investigação psicológica do subsolo. O Japão não vinha e eu estava todo esfolado e esfarinhado de lama. Quando desisti, ele arregalou os ombros e falou com arrogância: "que pena, mais um pouquinho e poderia conversar com os homens de olhos puxados, andando de cabeça para baixo". Eu era dois anos mais novo. Em uma família grande, alguém sempre será o funcionário público dentro de casa, a pagar banco, mico e receber as visitas no guichê da mesa da sala. Costuma ser o caçula. Sobrou para mim. Nem aí, pois não me restava razão para discordar do meu início, muito menos do meu fim. A gente torcia para que os mais velhos casassem logo, para ganhar um quarto único. Os irmãos festejaram a saída da irmã que fugiu com o namorado enquanto os pais gritavam e amaldiçoavam a adolescência. Queria um quarto sozinho para colar cartazes na porta do jeito torto das oficinas de carro. Desejava ser mecânico quando pequeno para expor figurinhas enormes de mulheres peladas, peludas, precárias. Pensar em dispor de um armário inteiro para minhas roupas barulhava a boca, os dentes disputavam pegas. Passei a infância com duas gavetas, um degrau da estante de livros e um abajur. Não conheci mala, passaporte e tirei a identidade aos 19 anos. O meu irmão mais velho gostava de mistérios, de provocar mistérios. Uma noite me acordou com uma lanterna. Deviam ser umas 4h. O relógio ainda sentia cólicas. Botou aquele facho preguiçoso na cara e disse: "vem, temos uma missão". Eu não penso ao acordar e fui. Pediu antes que pegasse todos os meus bonecos. "Todos", advertiu. Eu amontei os playmobil no casaco, receoso. Tinha sido o presente mais caro que recebi. Não emprestava a ninguém, nem levava para a escola para evitar o 'deixa ver' dos colegas e o 'me devolve' dos meus medos. Pulamos a janela. Ele havia deixado uma escada de sobreaviso. O irmão estava meio alterado, mal contendo a euforia. Mostrou um livro dos incas e relatou que as pessoas enterradas cresciam as unhas e os cabelos e voltavam mais fortes, sem estômago para envelhecer. Bocejava a falta de café. Pegou uma pá e foi abrindo um sulco imenso na horta, pouco se importando com as alfaces e as hortaliças. Fez uma sujeira sem tamanho, que a mãe incriminaria os gatos. Ajudava de colher, por simpatia às causas estranhas. "Agora põe", ele me orientou. "Põe o quê?", perguntei, já temendo suas loucuras e de me enfiar naquela covinha como quem coloca uma pantufa.
- Os bonecos!
- Não, não.
- Eles vão ficar fortes, de unhas e cabelos compridos e vamos buscá-los daqui a exatamente três meses.
Sua força física me fez acreditar. Enrolei-os em um saco com farelos de pão e larguei na terra, fechada com esmero de um cofre. Meu irmão desenhou um mapa para localizar os guerreiros. Eu chorei devagar para não atrapalhar a chegada de meu sono. Era verão, as aulas terminaram e voamos para praia. Na volta, peguei o mapa com a letra emendada e daltônica e parti para a horta. Desapareceu a horta e não culparia a neblina. O pai aproveitou a viagem para cumprir a reforma prometida há décadas e cimentou o terreno entre o abacateiro e a ameixeira. Passei a brincar com minha ausência, imaginando que um dia os cabelos e as unhas dos bonecos abririam o solo em um terremoto. Dos meus 32 anos, observo os mínimos movimentos do pátio com atenção e expectativa. O pátio de minha infância ainda vai enfartar.
Fabrício Carpinejar
EDUCADO PARA NÃO FALAR
Não importava se tinha razão, devia me calar. No meu tempo, ser educado era ficar em silêncio. Na mesa, não podia emitir som que não fosse da natureza do garfo e da faca. Criança aceitava, não falava. Como um bicho doméstico, um galo, um cachorro, um gato, um canário belga. Encabulava quando raspava a louça, arranhava as rodas ao estacionar no meio-fio do prato. Meu pai falava sem parar dos negócios, dos vizinhos, do futebol e eu escutava com continência e louvor. Nunca me passou pelos ouvidos nenhuma pergunta inteligente para fazer, até porque as perguntas inteligentes surgem das bobagens e não corria riscos. Se as conversas tivessem sido gravadas na época, descobriria que não apareci na própria infância. Entrava com um "obrigado" e saía no "com licença". Não questionava os hábitos, preocupado em me ver livre o mais rápido possível daquela cena. Não sabia como viver para me sentir morto. Não sabia como morrer para me sentir vivo. Meus bolsos cheios de bolas de gude para acompanhar as mãos. Os bolsos do meu pai cheios de chaves para desafiar as mãos. Os bolsos de minha mãe cheios de pedras do terço para esquecer as mãos. A sobremesa era sagu ou arroz de leite, que comia com vagar e ódio, já que consistia na mesma merenda da escola. Passava o dia comendo sagu ou arroz de leite. A canela em cima do doce me arrepiava de careta, emburricava a respiração. Me censurava antes da censura, me proibia antes da negação, me cavava antes de ser enterrado. Pensativo como quem se penteia no espelho. Prestativo como quem tem culpa por crescer. Nas saídas em família, permanecia igualmente calado, omisso, aceitando que as pessoas secassem seus dedos no meu rosto em cada encontro. Quando recebia um elogio público de comportado, o pai sorria, a mãe sorria, e bem que tentava sorrir, mas os dentes eram de leite e logo cairiam. Nunca levantei a voz. Falava para dentro, com a cabeça inclinada de cavalo cansado. Tinha serenidade porque não encontrava outro sentimento para colocar em seu lugar. Não havia estômago para chegar ao fim da esperança. Não estava escuro para me defender com vela, muito menos claro para procurar sombras. Conhecia de cor o ato de contrição, apesar da dificuldade de inventar pecados. A humildade lembrava covardia, o que explica minha vontade insana de fazer calar esse tempo, o meu tempo de camisa fechada até o último botão.
Fabrício Carpinejar
SOLIDÃO NÃO É PREJUDICIAL À SAÚDE
De todas as mesas postas, a do café da manhã é a que mais me influencia. Ser o último a levantar, as migalhas denunciando a família na toalha. Varrer o chão de linho com as mãos. O rosto inchado, aos poucos desinflando. A cozinha parada como nata. Escolher entre o mel e a geléia e não errar em nenhuma das decisões, dourar o pão sem pensar em nada, nadificar o pão. Tomar um gole de café forte como quem engole a luz. Barulhar o leite. O som do leite na garganta já é a voz querendo sair. O café da manhã torna-se a única refeição que não me sinto sozinho desacompanhado.
Não sou daqueles que vê alguém isolado e pensa que está infeliz, exilado, apartado da sociedade. Se a pessoa persiste fora do grupo numa festa, no trabalho, numa poltrona, de repente está alegre consigo mesma. Alegre com sua solidão. Há uma necessidade cultural de puxar conversa com quem está calado. Como se a conversa fosse companhia. Como se falar fosse um favor. Há a necessidade cultural de criticar quem mora com independência, como se fosse falta de opção. Há a necessidade cultural de chamar de coitado ou coitada quem não depende de um telefone para levantar os braços. Há a necessidade cultural de condenar a solteira e logo deduzir que não arrumou namorado por descrédito pessoal. E será que não é escolha? Na tradição familiar, as tias sofriam o maior dos preconceitos. Só viravam tias por incompetência, caso não casassem. Há uma necessidade cultural de chamar para se divertir um filho que lê um livro no quarto. Será que aquilo também não é diversão? Escutei muito: 'vá brincar lá fora, tem sol'. Dentro não pode ter sol? Duvido sim dos que não ficam um pouco em si, mergulhados, imersos, centrados, costurando as palavras com os cílios da agulha, tramando uma figura no pano de prato, uma figura que nunca terá legenda. Os pensamentos conversam quando paramos de ouvi-los. Cada um é seu próprio amigo em segredo. Solitário, respira-se a medicação do verde, limpa-se os óculos na camisa e sopra-se as lentes. Não é ruim querer ficar em seu canto, com seus hábitos, alargando os chinelos com o uso e desabotoando a boca com chocolate. Não se enxergar como a parte ofendida. Não ser refém do movimento para circular o sangue. O respeito não chega com a cor dos cabelos. A mata fechada tem sua clareira no solo. Assim é possível se preparar para amar mais o que não está na gente. Nem tudo que é par é completo.
Fabrício Carpinejar
BRINQUEDOS PELA CASA
Não tomei cerveja com o meu pai. Não conversei sobre mulheres com o meu pai. Não fui ao cinema com o meu pai. Não visitamos a Expointer. O máximo de aventura que enfrentamos juntos foi quando ele estacionava em local proibido na rodoviária ao pegar os jornais e me deixava esperando no carro. Suportava a seqüência de tormentos: as buzinadas de quem vinha atrás, o pisca ligado eternamente e o pavor da multa do guardinha. Não tive nenhum papo adulto ou cabeça com ele. Ele não me indicou caminhos, não reprimiu escolhas. Não assinava meu boletim. Não autorizava minhas viagens escolares. Não me ensinou história, literatura, português. Não me explicou o sexo, a única vez que chegamos perto do assunto foi quando comentei que seria pai e já era tarde demais. Ele saiu cedo de casa (ao menos para mim), quando tinha oito anos. Não joguei futebol com meu pai e seus colegas contaram que atuava de centroavante. Queria ter jogado ao lado dele, mesmo que seja para reclamar da falta de passe. Ele escrevia muito e o escritório vivia trancado, impraticável para corridas e pega-pega entre os irmãos. Não podíamos entrar pela frente da residência. É óbvio que arrumava uma escada para espiar o que ele anotava pela janela. É óbvio que não enxergava nada de diferente.
Quando caminhava pela calçada, meu pai andava com as mãos atrás. Como é sábio andar com as mãos atrás! Tudo o que falam delem, eu paro para escutar como quem necessita reconstituir a vida que não teve. Amigos, inimigos, amores e desamores. Ouço qualquer história dele com ardor e paciência. Compraria histórias e palavras de meu pai. Meu pai é uma agenda que não foi usada. Por isso, não reclamo quando recolho os brinquedos de meus filhos pelos corredores. A maioria xinga a bagunça, não eu. Eu me alegro. Posso estar cansado, acabado, sem reservas e arrecadarei um por um dos brinquedos com dedicação. É noite alta, vou recolhendo os destroços e colocando os bonecos na prateleira. Faço um altar, distribuindo os anjos de madeira, de palha e de pano nos degraus das arquibancadas. Dobro as roupas nas gavetas. Organizo os carrinhos, sou capaz de escutar as vozes dos livros, esbarro em algum brinquedo eletrônico que quase acorda a vizinhança. Às vezes me perco em admiração pelos filhos. Entro em um transe, acionado por uma expressão nova, um fraseado diferente, uma pergunta esperta. Permaneço quietinho diante deles, mexo seus cabelos, como que colorindo desenhos dentro dos traços. Eles pensam que estou distraído. Ah se soubessem que presto atenção, tanta atenção que me disperso de mim. Só neles. Ausente enfim de mim.
Fabrício Carpinejar
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