17.12.04

O Riso de Iolanda














O natal começa a repercutir no início de dezembro, fazendo com que a programação televisiva se transforme em um grasnar de oportunidades imperdíveis. Dona Iolanda, na altivez de seus 74 anos, cujos quais, 48 foram ao lado de seu amado e já falecido esposo Dionísio, encara na sala, o pequeno cadáver da gata Mimosa. A cena tem como trilha sonora, a bela canção natalina White Christmas ofertando um microondas em 3 vezes de noventa e oito sem juros numa imitação fajuta da aveludada voz de Bing Crosby.

Nas últimas semanas, a gata Mimosa andava abatida, pouco se alimentava, e iniciara a magnânima pratica animal de esconder-se, para evitar assim a contaminação cadavérica. Dona Iolanda levou Mimosa ao veterinário que sentenciou que a gata estava velha demais, seu coração andava fraco e nada mais restava, a não ser, levar a amiga para casa e aguardar. Dona Iolanda ainda tentou lutar contra o inevitável mas refletiu que as coisas eram assim mesmo, ninguém se importa com os velhos, porém são capazes de tudo para salvar as pequeninas e promissoras crias.
E assim fez Dona Iolanda... Tentando tornar a partida da amiga menos dolorosa possível, comprou trezentos gramas de guisado de primeira, uma lata de leite condensado, serviu os pratos da gata que por sua vez mal tocou na comida. Dona Iolanda sentou-se em frente a tv, e voltou a mergulhar em diáfanas recordações. Desde que se fora, Dionísio seu esposo, deixou um imenso vazio na casa, no lado direito da cama de ipê, no saldo bancário que minguava a cada mês obrigando Dona Iolanda a desfazer-se dos móveis, do carro e da sua cara coleção de jóias. Hoje, pouca coisa restava de uma época de ouro. Nem mesmo os filhos permaneceram ao seu lado. João Vitor mudou-se para o Paraná e é pai de duas crianças que Iolanda jamais conheceu. Maria Candida mora na zona sul, e uma vez por semana, liga preocupada para a mãe.

Vislumbrou épocas, que não bastava criar os filhos para o mundo, mas era preciso criar um mundo para os filhos. Dos suntuosos jantares, da limpeza cotidiana, de repassar a lição de casa e de jogar banco imobiliário com as crianças durante horas a fio. Um dia, João Vitor já adolescente, veio para casa com um pequeno filhote de gato que havia arrecadado na rua. Os pais inicialmente negaram a permanência do animal em casa, mas depois de insistentes solicitações e promessas de cuidado que jamais seriam cumpridas por parte dos infantes, Mimosa foi admitida na família. Um ano depois, Dionísio morreria, vítima de câncer de próstata.

A gata passou então, a viver enroscada nos pés de Iolanda nos dias de frio não deixando que lhe congelassem os dedos. Corria e brincava com qualquer inseto que lhe passasse em frente, e algumas vezes fugia para namorar. Numa destas escapadas, Mimosa acabou emprenhando, e teve 4 filhotes todos muito brancos, que assim como os seus próprios filhos, Iolanda um dia distribuiu pela vizinhança. A gata procurou-os pela casa e a partir de então adquiriu o habito de deitar-se no tapete da porta de entrada. Aguardava por uma visita de seus filhotes, (que jamais voltariam) e terminava por adormecer. Naquele dia, Mimosa deitou-se no mesmo local de sempre, e dormiu para nunca mais acordar.

Iolanda juntou o pequeno corpo inerte da amiga, deu-lhe um banho com um pano molhado, e o depositou numa caixa de papelão forrado de cetim. Embrulhou a caixa com uma folha de papel celofane, cruzando a tampa com uma fita violeta. Pegou na bolsa o endereço que o veterinário lhe dera. Um cemitério de animais que ficava num bairro próximo dali. Saiu para pegar um ônibus e depositar finalmente o corpo de Mimosa.
Na parada de ônibus, Dona Iolanda embarcou pela porta da frente e saudou o motorista mostrando sua identidade que lhe isentava o pagamento da passagem. Procurou por um assento vago, já que no reservado para idosos, estava esparrinhada uma adolescente que mascava descaradamente um chicle de boca aberta, e ainda escutava seu walkman numa altura perfeitamente audível aos demais passageiros do ônibus.
- Aqui tem lugar!

Disse um rapaz apontando o assento vago ao seu lado na janela. Dona Iolanda agradeceu a gentileza, sento-se no local indicado. Colou a caixa sob o colo. O rapaz logo puxou conversa, falando sobre a falta de educação desta juventude de hoje. Emendou na conversa, um comentário sobre como o trânsito ficava caótico nesta época de final de ano e de como era preciso ter paciência. Dona Iolanda ratificou falando que havia sido uma dificuldade comprar um jogo de pratos pintados a mão para a filha. O ônibus parou para um passageiro desembarcar. Quando a porta se abriu, o rapaz num só movimento, agarrou a caixa que estava no colo de Dona Iolanda e pulou para fora do ônibus.

Ela olhava boquiaberta enquanto os demais passageiros insurgiam-se com gritos de: - Pega-ladrão! O motorista parou o ônibus, levantou-se de seu assento e dirigiu-se até Dona Iolanda para perguntar se ela estava bem e se queria que ele parasse em alguma delegacia. Dona Iolanda sorriu, e deste sorriso nasceu um riso. E do riso uma gostosa gargalhada. A gargalhada de uma vida inteira, pensando na bela surpresa que a mulher do rapaz iria ter.





















Fonte da imagem:
Biblioteca de Pessoas

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